São Paulo precisa de ainda mais multas

07/03/2016

São Paulo precisa de ainda mais multas

É do poderoso cardeal Richelieu (1585-1642), que governou a França absolutista no início do século 17, a ideia de que não exigir o cumprimento de uma lei é o mesmo que autorizar o que ela quer proibir. Lembrei do vilão dos "Três Mosqueteiros" ao ver, na capa da Folha, a sequência de fotos de motoristas usando o celular ao guiar. De boa! E imaginei quantos deles não estavam teclando blasfêmias contra "a indústria da multa" diante da informação de que cresceram as infrações de trânsito em São Paulo no ano passado.

Confesso que já vinha irritado com o tema desde que li um editorial de jornal atacando a prefeitura paulistana pelo aumento da emissão de multas em 2015. O texto listava os argumentos recorrentes: a maior parte das infrações foi flagrada por radares automáticos, sem manejo humano; a prefeitura investe em equipamentos sofisticados para multar e não em semáforos; os agentes e equipamentos ficam escondidos para que as pessoas não escapem à punição; o investimento da municipalidade é na punição e não no esclarecimento; a prefeitura quer aumentar a arrecadação e por isso aperta as leis de trânsito...

Logo ao terminar a leitura, tive que sair. No caminho do ponto de ônibus, parei na faixa zebrada na esquina de casa, à espera de que o sinal de pedestres abrisse. Quando o farol ficou amarelo para os carros, muitos motoristas aceleraram, em vez de brecar. Três retardatários passaram já com a luz vermelha (um deles, mais cuidadoso, deu uma buzinadinha).

Quando chegava ao ponto de ônibus, pude observar a rua transversal congestionada, onde um motoqueiro escapava da muvuca seguindo pela ciclovia.

Peguei o ônibus, lento nas primeiras quadras, até entrar no corredor exclusivo, na pista central da avenida Consolação, quando atingiu uma velocidade maior. As pistas para os automóveis estavam congestionadas, os automóveis avançavamlentamente, mas as motos seguiam em alta velocidade pelo vão entre os carros.

Ao chegar à Faria Lima, desci e segui a pé até o local de meu compromisso, observando veículos que vêm das ruas transversais parados sobre a faixa de pedestres enquanto esperam para entrar na avenida.

Na volta, vi dezenas de bicicletas correndo pela ciclovia na ilha central, em velocidade frequentemente maior que a dos automóveis. Tão rápido iam que dois ciclistas nem pensaram em parar para os que atravessavam a avenida sobre a faixa de pedestres em frente ao shopping Iguatemi.

Peguei o ônibus na av. Rebouças, no sentido bairro-centro do mesmo corredor que me trouxe. Premidos pela urgência de tirar os pais da forca, alguns motoristas entravam com seus carros na faixa exclusiva dos ônibus, misturando-se com os táxis, e tornavam a sair ao se aproximarem de um dos radares instalados pela prefeitura, em lugares sempre identificados por placas. Nessa hora, o motorista apressado se esquece do pai e da forca e volta para a faixa reservada aos carros

As multas emitidas pelas prefeituras punem uma ínfima fração das infrações às regras de trânsito, a maior parte de leis básicas que se aprende na autoescola já antes de começar a guiar. Mas os carrocêntricos gritam seu imenso chororô.

Ligeiramente mais novo que Richelieu, o escritor François de La Rochefoucauld (1613-80) deixou-nos de herança a ideia de que a hipocrisia é uma homenagem que o vício faz à virtude. Os hipócritas que criticam a "Indústria da Multa" jamais defenderão o desrespeito às leis de trânsito. Eles querem apenas uma vigilância benigna. O que seria o mesmo que incentivar o desrespeito ao Código de Trânsito, como ensinou o cardeal absolutista. 
Leão Serva