Empresas do Reino Unido debatem licitação de ônibus e dizem que modelo de São Paulo limita competição

03/12/2018

Empresas do Reino Unido debatem licitação de ônibus e dizem que modelo de São Paulo limita competição

Em seminário no consulado britânico, concorrência da capital foi analisada junto às de Bogotá e Santiago

Fonte: Diário do Transporte

 

 

A licitação dos serviços de ônibus da cidade de São Paulo, que deve ter os editais relançados nesta terça-feira, 04 de dezembro de 2018, limita a concorrência e impede a modernização do sistema.

É o que se pode depreender da exposição feita por gestores de empresas de ônibus do Reino Unido, cada vez mais interessadas em atuar na América Latina.

As empresas Speer e Ascendal fizeram comparações dos modelos de licitação adotados em Santiago e Bogotá com o de São Paulo.

Além de dificultar a concorrência e a modernização, o modelo paulistano oferece pouca flexibilidade devido ao longo tempo de contrato.

As análises das empresas foram apresentadas no seminário “Modelos de Concessão para a Operação e Financiamento de ônibus”, realizado no último dia 28 de novembro em São Paulo e que teve cobertura do Diário do Transporte.

Dinheiro para as empresas de ônibus da Inglaterra não é problema.

Logo na abertura do evento, a cônsul Joanna Crellin anunciou que estão disponíveis cerca de 3 bilhões de libras (mais de 16 bilhões de reais) para financiar projetos em várias áreas na América Latina, inclusive para a mobilidade. Os recursos, operados pela UK Export Finance, agência de crédito à exportação do Reino Unido, serão liberados não só pela qualidade do projeto, mas também pela necessária garantia de que 20% dos recursos estejam comprometidos com a compra e/ou contratação de produtos britânicos.

O problema, então, são os modelos de licitação adotados no Brasil.

A representante da Speer Group, Taís Santiago, apontou que a grande novidade nos contratos de licitação de Santiago e Bogotá, respectivamente as capitais de Chile e Colômbia, está na separação de contratos entre o fornecedor da frota e o operador.

Taís explicou que essa separação permite a realização de contratos mais curtos o que, por sua vez, garante a correção de erros e a modernização de processos, o que é mais difícil e às vezes impeditivo em contratos muito longos.

O fundador e presidente executivo do Ascendal Group, Adam Leishman, citou alguns exemplos de concepção de sistemas de transportes que considera de sucesso, como o de Singapura, e apontou a importância do conceito de “Transit Oriented Development”, o crescimento orientado junto aos eixos de transporte público, incrementando a eficiência e qualificando a cidade. Os planos diretores recentes de São Paulo já consideram essa possibilidade, e alguns resultados já são observados em regiões da capital, como na zona Oeste.

SEPARAÇÃO DA FROTA E DA OPERAÇÃO

Em sua apresentação, a representante da Speer, Taís Santiago, apontou que a grande novidade nos contratos de licitação de Santiago e Bogotá, respectivamente as capitais de Chile e Colômbia, está na separação de contratos entre o fornecedor da frota e o operador.

 

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Adam Leishman citou as cidades que, para ele, têm o melhor modelo de operação de sistemas de transporte coletivo na atualidade: Londres e Perth (Austrália), além de Estocolmo e Singapura.Taís demonstrou que essa separação permite a realização de contratos mais curtos o que, por sua vez, garante a correção de erros e a modernização de processos, o que é mais difícil e às vezes impeditivo em contratos muito longos.

O comum a todas elas: têm o que chamou de “baixas barreiras de entrada”, ou seja, permitem competividade de mercado para o ingresso de novos operadores; exigem requisitos de alta experiência, o que atrai licitadores de classe mundial; controlam os ativos e os requisitos de entrega (ônibus e garagens); trabalham com prazos mais curtos; têm disponibilidade de informação (o mais cedo e tanto quanto possível); atuam com frequência de propostas, ou seja, licitações menores e constantes, e não uma licitação única de todo o sistema uma única vez; não valorizam apenas o menor preço; e possuem auditoria independente de qualidade (operacional e manutenção).

A POSIÇÃO DA SPURBANUSS

Francisco Christovam, presidente da SPURBANUSS – Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo, esteve presente ao evento, e faz algumas ponderações sobre as apresentações.

Primeiramente ele alega que, apesar de não ter ficado explícito em nenhum momento qualquer comparação valorativa entre sistemas, as especificidades do modelo de licitação paulistano não foram abordadas. “Talvez não fosse o caso, mas se comparar apenas itens específicos de processos licitatórios não nos permite ver o que de fato acontece nas cidades, como por exemplo se há prioridade para os ônibus nas vias, quanto tempo demanda para uma licitação ser preparada e finalizada, etc”.

Francisco lembra que enquanto Bogotá tem um forte sistema estrutural como o TransMilenio, apesar de hoje passar por alguns problemas, São Paulo possui apenas 150 km de corredores de ônibus, e 450 km de faixas exclusivas. “Muito pouco para se garantir itens fundamentais de conforto como regularidade e frequência”, diz Francisco.

Em suma, o presidente da entidade que representa os operadores de ônibus em São Paulo reclama que não se levou em conta a extrema complexidade do transporte público da capital. “A maneira de se reduzir o prazo dos contratos, por exemplo, seria o poder público comprar a frota, e contratar apenas a operação. Mas numa situação de penúria como vivemos hoje, e com tantas necessidades prementes em saúde, educação, zeladoria, como o poder público poderia assumir isso, e ao mesmo tempo garantir a qualidade?”, questiona.

“A questão é anterior”, ele aponta. “Enquanto o transporte público por ônibus não for assumido como prioritário, não tiver infraestrutura necessária, prioridade real nas vias, tudo o que se fizer será paliativo”, ele garante.

“Além disso temos a questão dos processos licitatórios que se alongam por anos a fio. Desde 2013 era para ter sido feita a licitação, e até agora não conseguimos. O Tribunal de Contas invade o âmago do edital, extrapolando suas funções, os permissionários já estão em seu oitavo contrato emergencial, as concessionárias em seu segundo contrato. São dificuldades que demonstram a complexidade do sistema de transporte público em São Paulo”.

Francisco conclui: “as experiências de outros países são ótimas, claro, mas precisamos levar em conta nossas especificidades e problemas, que são muitos e complexos, e precisam ser resolvidos”.

O EXEMPLO DE LONDRES: PRÊMIO POR RESULTADO

O consultor Arnaldo Luís Santos Pereira, especialista em sistemas de transportes, analisou o caso de Londres, citado por Adam Leishman, e disse ao Diário do Transporte que foi necessário um longo caminho para que a capital inglesa alcançasse os resultados positivos apontados hoje por especialistas.

 

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Arnaldo primeiramente dá números ao sistema. A rede de ônibus urbanos de Londres transporta em média 6,5 milhões de passageiros por dia, e é composta por uma frota de 9.590 ônibus, com cerca de 700 linhas, das quais fazem parte uma rede de mais de 130 linhas noturnas, das quais mais de 100 atendem 24 horas por dia, durante os 7 dias da semana.

Para se chegar ao modelo atual, tido como bem-sucedido, o consultor conta que foi preciso um longo percurso. Após um período de forte decadência nos anos 70, e uma série de tentativas e mudanças, erros e acertos, hoje os ônibus se tornaram o modo de transporte público mais utilizado nos últimos anos pelos londrinos.

“Mas é bom lembrar que as iniciativas não foram tomadas por acaso pelos governantes, houve uma série de estratégias definidas, consultas públicas e devidamente publicadas. O Prefeito estabelece suas diretrizes e ações, onde deixa claras suas intenções e assume compromissos com a população”, Arnaldo ressalta.

Os contratos com as empresas operadoras, que é o que nos interessa, foram aperfeiçoados durante mais de uma década pelas autoridades de Londres. “Hoje a fórmula a que chegaram associa a remuneração dos serviços aos objetivos da Prefeitura: em lugar de fiscalizar com base em multas, foram criados incentivos, que uma vez atendidos rendem bônus ao contratado”, Arnaldo assinala.

O contrato por incentivo define uma meta para cada linha, descreve Arnaldo. Ele diz que essa meta é chamada de “tempo de espera excedente”, que seria, a grosso modo, a metade do intervalo de tempo entre ônibus que ele vai pegar. Isso é calculado pela Transport for London (TfL – entidade gestora do sistema) para cada linha em cada trecho, de onde se estabelece uma meta anual de regularidade para o operador, o que seria o tempo máximo de espera para o passageiro.

Se o operador conseguir uma redução na meta definida para o tempo de espera, ele receberá um bônus sobre seu faturamento anual. “O incentivo corresponde ao pagamento de um bônus de 1,5% do preço base contratado para cada 0,10 minuto em que Tempo Médio Anual de Espera Excedente situe-se abaixo do Padrão Mínimo contratual”, detalha Arnaldo. Mas se ele não conseguir melhorar o desempenho da linha, ele é punido: “a remuneração é reduzida em 1% do preço contratado para cada 0,10 minuto em que o Tempo de Espera Excedente fique acima do Padrão Mínimo”.

Arnaldo recentemente foi visitar o Centro Operacional de uma empresa de transporte que participa do sistema de ônibus de Londres. Ele conta que ficou impressionado pelo esforço dos funcionários para atingir as metas de regularidade definidas pela TfL, ou seja, o Tempo Médio de Espera Excedente, tudo para garantir ao fim do ano o bônus garantido pelo contrato. “Em resumo: a operação é problema do operador; se ele operar bem, vai receber a mais; se operar mal, vai receber menos. Ele é remunerado por seus esforços e competência”, diz Arnaldo.

Mas e do lado do poder público?

Arnaldo conta que foi preciso não somente um longo caminho de estudos e tentativas, “como também a implantação de um vasto programa de equipamentos e sistemas de ITS, que criou as bases para a gestão dos serviços e dos contratos por meio de grandes e consistentes quantidades de informação”. Ele cita que a preparação para as Olimpíadas serviu como um momento importante para que esses esforços tecnológicos ganhassem um forte impulso, com a criação de uma central operacional de controle de todas as vias da cidade.

“É o que eles chamam de Centro de Operações do Transporte de Superfície e de Tráfego, que reúne num único ambiente, mas com funções e instrumentos de controle específicos, três centros de controle integrados: Centro Operacional de Tráfego da London Streets (a CET de lá), o CentreComm – Centro de Controle Operacional da London Buses (Ônibus) e o MetroComm – Centro de Controle Operacional da Polícia Metropolitana (divisão encarregada do trânsito)”, explica Arnaldo.

 

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Em suma, o poder público entende que cabe a ele garantir as melhores condições para que a operação das vias – e por conseguinte dos ônibus – ocorra com o mínimo de interferências. “Eles têm todo o histórico dos congestionamentos, dia e hora, mapeados localmente; a partir daí as ocorrências que interferem diretamente na circulação, como acidentes e outros eventos externos, são excluídas da penalização ao operador”, diz Arnaldo.

Arnaldo dá mais um exemplo de como a autoridade de transporte em Londres se preocupou em garantir a infraestrutura essencial para a operação: existem atualmente, segundo informa a TfL, 1.841 semáforos com prioridade para ônibus, compreendendo 1.445 cruzamentos e 396 travessias de pedestre.

Esta retaguarda tecnológica, que vem sendo montada desde os anos 2000, possibilitou a implantação do Pedágio Urbano em 2003, que levou o nome de congestion charging (cobrança pelo congestionamento). Esta medida, que gerou receita para ajudar no financiamento do sistema, somente foi possível, no entanto, graças à oferta de mais e melhores serviços de transporte público, afirma Arnaldo.

Em São Paulo, ademais como no restante do Brasil, a prioridade para o transporte coletivo por ônibus é uma raridade. Com os automóveis ocupando 85% do espaço viário, o que resulta em congestionamentos e maior tempo de viagem para os ônibus, aumentando custos de operação com forte impacto na tarifa, o sistema de ônibus vem numa espiral decrescente.

As soluções para o transporte por ônibus no Brasil esbarram justamente na prioridade que ele nunca teve. Talvez o melhor exemplo de Londres esteja justamente na forma como as autoridades de lá perseguiram a correção dos problemas do sistema de transporte por anos a fio. E investiram em tecnológica para garantir a prioridade do uso da via, ou seja, a infraestrutura necessária à operação.

Arnaldo lembra que Londres e São Paulo são cidades com realidades muito diferentes, com estruturas políticas e administrativas abissais. Por esse motivo ele não acredita que seja possível importar pura e simplesmente as medidas que foram implementadas por lá. Por tudo que foi relatado, fica claro que não.

Talvez o melhor a fazer seja começar pelo princípio: aceitar que o transporte coletivo é essencial para a vida e a economia de uma cidade, como fizeram aquelas que hoje são citadas como exemplares para o restante do mundo.

Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes

Colaboração de Adamo Bazani