Mulheres no comando

15/01/2020

Mulheres no comando

Núbia, Simone, Amarilis e Gislene relatam suas experiências no transporte público e individual e sugerem o que poderia melhorar na mobilidade urbana de São Paulo

Fonte: O Estado de S. Paulo


Patrícia Rodrigues

Elas estão na direção do ônibus, do carro de aplicativo e nas cabines dos trens de duas linhas de metrô. Juntas, as quatro são responsáveis por transportar milhares de paulistanos, praticamente todos os dias. Por isso, conhecem muito bem o cotidiano da cidade assim como os principais problemas enfrentados por milhões de pessoas que se deslocam pelas ruas, avenidas e linhas do metrô de São Paulo para cumprir seus compromissos diários.

Nos depoimentos a seguir, elas relembram como começaram em suas respectivas carreiras, relatam como superaram os primeiros desafios e preconceitos, contam detalhes sobre o cotidiano de suas atividades profissionais, falam sobre o relacionamento com os passageiros e dão dicas preciosas sobre como melhorar a mobilidade urbana em 2020.

BOM HUMOR PARA VENCER PRECONCEITOS

Simone Soares é motorista da empresa Mobibrasil há seis anos.

 

Comecei como cobradora em uma cooperativa e há dez anos tive a oportunidade de me tornar motorista. Foi muito difícil no começo porque meus colegas não aceitavam e não acreditavam na minha capacidade. Era comum ouvir piadas, alguns jogavam o ônibus na frente, me fechavam para que eu me assustasse e desistisse.

Depois mudei para a Mobibrasil. Hoje dirijo um superarticulado de 23 metros, novo e com ar-condicionado na Linha 607C (Jardim Miriam—Itaim Bibi), enquanto muitos ex-colegas ainda estão nos ônibus menores. Nunca tive qualquer tipo de problema.

As motoristas dirigem com mais cuidado, não dão freadas bruscas. Mas ainda há muito preconceito, sobretudo por parte das mulheres — já me disseram que não andariam comigo. Mas sinto que muitas queriam estar no meu lugar. Mulheres que dirigem são muito invejadas e, quando me veem na rua com um ônibus desse tamanho, as pessoas batem palmas, fazem gestos de parabéns.

Sou muito grata porque amo meu trabalho, a maioria dos passageiros gosta muito de mim e faz questão de pegar o ônibus comigo. Uns me trazem até presentes. Já ganhei um bolo no dia do meu aniversário.

Mas o trânsito de São Paulo é demais — e olha que trabalho no corredor de ônibus. A gente tem que tomar muito cuidado porque tem pessoas desatentas, que passam entre os carros, que atravessam na frente do ônibus distraídas com o celular.

A minha linha tem 33 carros e transporta 38 mil passageiros por dia. É muita gente, os carros vão lotados. Então, há sempre alguém que não está de bom humor e a gente tem que saber lidar: colocar um sorriso no rosto sempre ajuda a melhorar qualquer situação. Educação, bom humor e simpatia sempre abrem portas.

EXPANDIR O ACESSO AO TRANSPORTE

Já trabalhava na bilheteria do metrô desde 2010 e, no ano seguinte, houve um concurso interno para a minha função. Era um grande desafio e até então não me via como operadora de trem. Mas a minha percepção mudou depois do incentivo de uma colega. Fiz uma prova bem difícil e passei. Depois de um treinamento de quatro meses, passei a trabalhar na Linha 2-Verde e atualmente atuo na Linha 3-Vermelha, em que conduzo cerca de 13 mil pessoas por dia.

Nossa presença no comando do trem representa segurança para todos os passageiros. Eles sabem que não estão sozinhos durante o trajeto. Além dos conhecimentos técnicos, meu trabalho exige atenção plena, pois tenho que observar e ter controle de muitas coisas ao mesmo tempo: dos passageiros na plataforma, da emissão de avisos sonoros, da comunicação com o centro de controle, detectar as possíveis anormalidades com antecedência, dar informações corretas...

Eu me encontrei nessa profissão e recebo o respeito e o carinho das pessoas. Nossa cidade é imensa e diversa em todos os sentidos, no número de pessoas, no movimento, nos muitos grupos que circulam por aqui e que, apesar de todos os problemas (como o do transporte lotado), elas seguem a vida, fazem as coisas acontecer e mantêm o astral.

No meu trabalho também tenho a oportunidade de presenciar gestos de gentileza e de respeito que fazem a diferença. Claro que tudo sempre pode melhorar. O nosso trânsito é complicado, faltam meios de locomoção em muitas regiões. Por isso, gostaria que houvesse mais investimento em relação ao transporte como um todo, para que os benefícios de quem utiliza o metrô e os demais trens também cheguem à cidade inteira.

Núbia Moraes, operadora de trem da Linha 3-Vermelha há cinco anos.

MAIOR INTEGRAÇÃO ENTRE OS DIFERENTES MODAIS

Amarilis de Castro, condutora de trem há nove meses na Linha 5-Lilás.

 

Um amigo me avisou sobre o concurso público para ser operadora dos trens. Já havia concluído o ensino médio como técnica em mecatrônica e construção civil e passei no processo seletivo. Foi muito desafiador, mas a sensação de vitória foi maior ainda. Depois dessa etapa, recebi um treinamento de 60 dias para operar o sistema, embora todos os dias sejam de aprendizado.

Creio que já cheguei em um ambiente em que ser operadora de trem não é mais exclusividade do público masculino: das oito pessoas que fizeram treinamento na minha turma, quatro eram mulheres. É um trabalho de grande responsabilidade, muito gratifi

cante saber que estou conduzindo milhares de pessoas a seus destinos, fazendo parte dessa engrenagem gigantesca que é o setor de transportes da maior metrópole do País.

Todo dia há um aprendizado novo. Percebi que os avisos sonoros e as mensagens audiovisuais têm ajudado muito a conscientizar as pessoas e noto que elas se tornam mais receptivas e colaborativas. Isso auxilia na fluidez do sistema como um todo.

Para melhorar a mobilidade na nossa cidade é preciso ampliar a integração entre os diferentes tipos de transportes e, com isso, oferecer cada vez mais uma melhor infraestrutura, qualidade e rapidez à população.

MAIS EDUCAÇÃO, EMPATIA E RESPEITO AO PRÓXIMO

Trabalhava como operadora de telemarketing e, para complementar a renda, comprei um carro em 2017 para atuar como motorista de aplicativos por quatro horas. Amo dirigir e, como gosto dessa liberdade de horários, as horas na frente do volante foram aumentando: hoje chego a rodar 12 horas, sempre a partir das 16 horas, com uma folga semanal. Prefiro esse horário, pois me livro do trânsito e do calor.

Com mais de 5 mil viagens, essa atividade me trouxe uma visão diferente da cidade, já desbravo a região central, que é onde gosto de atuar, sem qualquer problema. Cada corrida é um mundo diferente, uma história nova. Gosto de conversar quando há abertura para isso, mas sempre com o devido distanciamento. O maior desafio, sem dúvida, é saber lidar com os passageiros da madrugada, que saem das festas com garrafas e quase nunca estão sóbrios.

Preciso impor limites, pois muitos acham que o nosso veículo é uma extensão da balada, especialmente a partir das quintas-feiras. Mas já estou ‘vacinada’. Trabalhar como motorista me dá essa liberdade de escolher os dias, os horários e planejar melhor a minha remuneração, ampliar a minha renda. Tenho aprendido muito como ser humano, a entender melhor que cada pessoa é de um jeito. Nas ruas, sei que não podemos ter controle de tudo, as situações nem sempre podem ser planejadas. Portanto, o que me cabe é lidar com elas, sem perder o controle. Para melhorar as relações no mundo e não só no trânsito, acredito na educação, no respeito com o próximo e em mais empatia entre as pessoas.

Gislene Meireles é motorista de aplicativo há dois anos.