A desventura do combustível alternativo

19/11/2019

A desventura do combustível alternativo

Por Francisco Christovam

Os novos contratos de concessão dos serviços de transporte urbano de passageiros de São Paulo contemplam as exigências da Lei Municipal Nº 16.802, sancionada em 17 de janeiro de 2018, que disciplina o uso de fontes motrizes de energia menos poluentes, na frota de cerca de 14 mil ônibus que circula na cidade. 

No entanto, as primeiras discussões sobre o uso de combustíveis alternativos para mover a frota de veículos do sistema de transporte coletivo urbano de São Paulo remontam à década de 70, quando o Brasil gastava praticamente todos os recursos financeiros obtidos com a exportação de bens e serviços na importação de petróleo. 

Para tirar o país da chamada Crise do Petróleo, as três instâncias de governo se uniram para desenvolver programas e projetos, com vistas à substituição do óleo diesel utilizado nas frotas de ônibus das cidades de médio e grande portes. 

 A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, desenvolveu o Plano SISTRAN, que foi concluído em 1975, propondo para São Paulo uma rede de ônibus elétricos, com cerca de 1.280 veículos do tipo trólebus, para operar em 280 quilômetros de corredores exclusivos. Esse plano serviu de base para a extinta Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC elaborar um “Programa de Ação Imediata”, que incluiu o desenvolvimento de projetos básicos, com a definição de características técnicas atualizadas, de uma moderna garagem, de redes de contato e de alimentação e de subestações retificadoras, bem como a elaboração de uma completa especificação de desempenho para veículos elétricos, do tipo trólebus. 

Com recursos provenientes do governo federal, além da ampliação do sistema de trólebus de São Paulo, os sistemas de ônibus elétricos de Recife, Santos e Araraquara também foram revitalizados e expandidos. Em 1982, foi instalado um novo sistema de trólebus em Ribeirão Preto. 

 Na sequência, em 1984, a mesma CMTC firmou um acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, para a utilização do gás metano, originário do processamento anaeróbio do lodo obtido com a limpeza do leito dos rios Tietê e Pinheiros, nos ônibus da sua frota própria. A experiência fracassou por inexistência de estudos consistentes de viabilidade, ausência de recursos financeiros para a adaptação dos veículos e impossibilidade de expandir o número de estações para o reabastecimento da frota. 

Em 1991, após acordo com a empresa Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás, a Prefeitura de São Paulo promulgou a Lei Municipal Nº 10.950/91, determinando que, no prazo de dez anos, as empresas concessionárias ou permissionárias de transporte coletivo na Capital, deveriam substituir os motores movidos a óleo diesel por unidades movidas a Gás Natural Veicular – GNV. 

Mais uma experiência que jamais poderia ter ido adiante, por absoluta falta de estudos prévios, planejamento e aporte de recursos financeiros, por parte do poder público. 

Quase vinte anos depois, a Lei Municipal Nº 14.933, de 05 de junho de 2009, no seu artigo 50, estabeleceu que “os programas, contratos e autorizações municipais de transportes públicos devem considerar a redução progressiva do uso de combustíveis fósseis, ficando adotada a meta progressiva de redução de, pelo menos, 10% (dez por cento) a cada ano, a partir de 2009 e a utilização, em 2018, de combustível renovável não-fóssil, por todos os ônibus do sistema de transporte público do Município.” Nem é preciso dizer que, mais uma vez, nenhuma providência prática foi tomada para o cumprimento da legislação vigente, sendo essa mais uma lei que “não pegou”. 

Ao longo desse tempo e por questões relacionadas muito mais à proteção do meio ambiente, várias outras iniciativas foram tentadas. A título de exemplo, vale citar a utilização de etanol aditivado com substância detonante em motores especiais do ciclo diesel, o uso de misturas de diesel convencional com diesel de cana de açúcar, o uso células de hidrogênio para gerar energia elétrica para baterias embarcadas e misturas de alguns aditivos ao óleo combustível. Todas essas tentativas não lograram sucesso, seja por razões técnicas, comerciais, econômicas, operacionais ou mesmo pela falta de maior interesse do poder público na condução de programas bem fundamentados, voltados à redução da emissão de poluentes e gases do efeito estufa pelos ônibus. Em resumo, essas experiências não passaram de iniciativas isoladas e pontuais, sem nenhum efeito prático e sem qualquer aderência à uma política pública consequente definida pelo poder concedente. 

Para não dizer que tudo se resume a um estrondoso fracasso, desde o ano de 2000, a empresa ELETRA – Tecnologia de Tração Elétrica, com sede em São Bernardo do Campo, vem se dedicando à montagem de ônibus elétricos, cuja energia de tração é gerada por um sistema moto-gerador, ou seja, com um motor à combustão que aciona um gerador de energia elétrica. Com essa tecnologia, há cerca de 400 ônibus híbridos rodando na Região Metropolitana de São Paulo, em Rosário, na Argentina, e em Wellington, na Nova Zelândia. 

Finalmente, em meados de janeiro do ano passado, foi sancionada a Lei Municipal Nº 16.802 que deu nova redação ao artigo 50 da Lei Nº 14.933/09. Além de outras exigências, a nova lei estabelece que, num prazo de dez anos, deverá haver uma redução mínima de 50% e, num prazo máximo de vinte anos, uma redução de 100% das emissões totais de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil. A nova lei estabelece ainda que, num prazo de dez anos, deverá haver uma redução mínima de 90% de material particulado (MP) e de 80% de óxidos de nitrogênio (NOx), em relação ao total de emissões das frotas atuais de ônibus; e num prazo máximo de vinte anos, deverá ocorrer uma redução mínima de 95%, tanto de material particulado (MP) como de óxidos de nitrogênio (NOx). 

São Paulo Transporte S/A – SPTrans, por ocasião da publicação do edital de licitação que culminou com a contratação das empresas privadas que deverão operar o serviço de transporte coletivo urbano de passageiros por ônibus, determinou que as futuras concessionárias cumpram um cronograma de redução percentual das emissões dos ônibus das suas respectivas frotas, ano a ano. Vale registrar que a SPTrans está sendo, neste contexto, mais exigente do que a própria Lei Municipal vigente, ao inviabilizar o arbítrio das empresas sobre as possíveis alternativas tecnológicas para cumprimento das metas de redução de emissões previstas na lei. 

Desde a publicação dessa nova lei, as empresas operadoras do sistema de transporte por ônibus de São Paulo vêm discutindo formas de cumprimento das exigências legais e contratuais estabelecidas, considerando três aspectos fundamentais do processo de decisão. Qualquer que seja a tecnologia a ser adotada, ela precisa resistir a uma análise apurada de disponibilidade, confiabilidade e razoabilidade, quanto à sua aplicação. De forma mais detalhada, é preciso saber se existe no mercado, hoje ou num futuro próximo, a disponibilidade de mais de uma tecnologia viável e se elas são confiáveis, do ponto de vista da autonomia e da resistência às condições operacionais a que serão submetidas e, ainda, se os custos de investimento, de operação e de manutenção dessas tecnologias são razoáveis. 

No que se refere aos ônibus com tração elétrica, sejam eles trólebus ou veículos a bateria, há que se considerar o custo da infraestrutura necessária. No caso dos trólebus, é preciso avaliar o custo da rede de alimentação, da rede de contato e das subestações retificadoras. No caso dos ônibus a bateria, entre outras questões, é preciso conhecer mais e ponderar a autonomia dos veículos, o tempo necessário para o abastecimento, em condições normais ou de carga rápida, bem como sobre a durabilidade e o custo do descarte das baterias, quando elas atingirem o limite da sua vida útil. É imprescindível, antes de decidir sobre uma ou outra tecnologia, verificar quem arcará com os investimentos e custos de implantação e de manutenção de toda a infraestrutura necessária, seja para os trólebus ou para os veículos à bateria. 

De certa forma, a mesma preocupação se faz presente na eventual opção por outras tecnologias, como os híbridos “plug-in” e os ônibus a gás, que requerem infraestrutura de armazenagem, carregamento e abastecimento nas garagens. 

Mais recentemente, surgiu a possibilidade de se utilizar, em motores do ciclo diesel, um novo combustível, cuja característica principal é ser totalmente intercambiável com o óleo diesel de origem fóssil. Trata-se do Hydrotreated Vegetable Oil – HVO, também conhecido como diesel verde, que é um óleo vegetal hidrogenado que pode ser misturado, em qualquer proporção, ao óleo diesel convencional, sem a necessidade de nenhuma adaptação dos motores utilizados nas frotas de ônibus. 

O HVO, já utilizado em escala comercial em alguns países, pode ser considerado a versão renovável do diesel e pode ser obtido a partir de resíduos orgânicos, lodo de esgoto, óleos vegetais ou gordura animal, tratados com hidrogênio. O novo combustível tem a estrutura de hidrocarbonetos muito semelhante à do óleo diesel convencional, pode tornar os motores mais eficientes e reduzir em 100% as emissões de dióxido de carbono (CO2), em cerca de 10% as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) e em até 30% as emissões de material particulado (MP). 

Embora ainda não esteja sendo produzido no Brasil, o HVO vem despertando o interesse de grupos privados e da própria Petrobras, que vislumbra a possibilidade de utilizar a capacidade instalada de algumas das suas refinarias, que não estão trabalhando a plena carga. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP já se prepara para regulamentar vários tipos de combustíveis renováveis, em particular os biocombustíveis fabricados a partir do hidrotratamento de óleos vegetais ou gordura animal. 

O HVO pode vir a ser, muito antes do prazo de atendimento da meta intermediária de dez anos, estabelecido na lei, o caminho mais curto e mais viável, do ponto de vista técnico e econômico, para o atendimento das exigências legais e contratuais, por parte das empresas operadoras de transporte por ônibus de São Paulo, sem prejuízo da adoção de outras tecnologias complementares que, a seu tempo, podem ser desenvolvidas, testadas e aprovadas para uso comercial, incluindo a definição de condicionantes técnicas, operacionais e financeiras. 

A triste experiência das empresas operadoras de ônibus de São Paulo, com sucessivas iniciativas fracassadas, não recomenda avançar nem mais um passo amparado em “achismos”, improvisos ou amadorismo. O cumprimento das metas estabelecidas pela Lei Nº 16.802/18, para a redução das emissões dos veículos do sistema de transporte por ônibus de São Paulo, por meio de qualquer opção tecnológica arbitrada, que os próprios requisitos da lei facultam, deve ser fruto de uma iniciativa de governo, solidamente embasada, e fazer parte de um plano estratégico responsável, com início, meio e fim, e avaliação permanente dos fatores de sucesso do projeto. 

Não será possível chegar a bom termo nesse desafio, sem o efetivo engajamento do governo municipal na definição de uma política pública, na estruturação de um projeto específico e nos aportes financeiros necessários. Não há como imaginar que uma mudança dessa magnitude, envolvendo uma completa modificação do perfil tecnológico de toda a frota de ônibus de São Paulo, possa ocorrer sem que haja um mínimo de planejamento e um compromisso firme com mecanismos contratuais claros que permitam corrigir rumos, sem jamais desistir dos objetivos essenciais e retornar ao ponto de partida.