ARTIGO: “OS TRANSPORTES PÚBLICOS NA UTI”

26/06/2020

Fonte: Fetpesp

Artigo escrito por Por: Jurandir Fernandes – Presidente da Divisão America Latina UITP

Na maior parte da América Latina atingida pela COVID19 os transportes públicos estão na UTI lutando para sobreviver! Poucos receberam socorro financeiro. Nosso principal modo  de  transporte  público  é  o  ônibus,  que  desde  o  início  dos  anos  2000  perde passageiros. Os motivos antigos são amplamente conhecidos, porém a partir de 2010 surgem  outros  fatores  para  a  queda  de  passageiros:  aplicativos  de  carona  e  de compartilhamento e novos negócios derivados do modelo UBER.  Milhões de pessoas passam a ser atendidas através de aplicativos. Desde então, os efeitos da digitalização, da internet e da portabilidade e conectividade dos equipamentos deram origem a uma explosão de novos negócios e mudanças comportamentais da população.

A pandemia acelerou este quadro. Quem agir imaginando que a queda de passageiros é apenas conjuntural e que com subsídio, uma tarifa mais baixa e uma dose de vacina tudo voltará ao normal, estará irremediavelmente optando pela saída de cena. Estará agindo como os operadores de carruagens do início do século passado que pediam proteção legal contra os bondes e carros sem tração animal para evitar a queda de passageiros que o setor vinha sofrendo. O mundo mudava e aparentemente a viseira não cobria apenas a visão dos cavalos.

Sem armas para conter a progressão da COVID19, restou-nos o distanciamento social. O  transporte  público  sofreu  duplo  impacto:  perda  brutal  de  demanda  e  dever  de continuar  operando  com  oferta  e  custos  excedentes  para  resguardar  a  saúde  dos passageiros dentro das novas normas sanitárias.

Os dias de quarentena levaram a muitas discussões e reflexões sobre o futuro. Dentre tantas incertezas, registram-se alguns consensos: haverá impactos sobre o mundo do trabalho e sobre o planejamento urbano, como ocorreu no passado após grandes pandemias. Novas formas de trabalho, estudo, lazer e circulação afetarão os transportes e moradias. A gritante desigualdade social reforçará os debates políticos, aí incluído o tema da renda mínima. A infraestrutura sanitária entrará na pauta dos projetos urgentes.

No mundo do trabalho, permanecem duas tendências: robotização das atividades manuais repetitivas e de algumas atividades cognitivas, estas substituídas por softwares apoiados em grandes bases de dados e inteligência artificial.

Os trabalhos e ações que podem ser executados de forma remota em boa medida passarão a ser feitos em casa. A quarentena acelerou este processo e o uso de toda uma cadeia de serviços via internet. De casa podemos trabalhar em grupo ou participar de seminários com dezenas de pessoas. O compartilhamento de dados em nuvem

aumentou a eficácia das equipes. Doravante, não toleraremos deslocamentos de três horas para discutir presencialmente etapas de um projeto. Não viajaremos por qualquer motivo.

Muitas empresas renegociaram os espaços físicos que ocupavam e fazem rodízio de seus funcionários em instalações menores. Um dos maiores grupos financeiros do país já definiu: haverá a opção de se trabalhar apenas um dia por semana na empresa. O resto, em casa.

Se o ensino à distância já crescia no nível universitário, agora tornou-se inevitável, ao menos em alguns dias da semana, até para o segundo grau. Que tal uma aula com vídeos, imagens, gráficos e inserções de debates e pesquisas on-line no lugar de uma lousa perante uma plateia sonolenta? Que tal um encontro uma vez por semana com avaliações e debates presenciais?

A tendência é a de buscar menores distâncias para as tarefas de rotina. Seremos mais seletivos na escolha de onde morar e daremos mais valor ao comércio de nosso bairro. Vale a pena residir em um local poluído e inseguro que nos consome horas por dia no trânsito para ficar “perto de tudo” sendo que parte desse “tudo” poderei usufruir a partir de casa? Se posso trabalhar em casa, por que não inverter: morar num lugar saudável e ir alguns finais de semana para a metrópole?

Frente a esse quadro, os cenários e algumas medidas para os transportes públicos sobre pneus poderiam ser discutidas tendo por base que:

  1. Antes de tudo, a concessionária deverá conhecer detalhes sócio-econômicos e comportamentais dos seus clientes, antigos passageiros cativos. Boa parte dos dados está disponível no sistema de bilhetagem eletrônica. Veja recente pesquisa feita pelo BID e Moovit sobre os passageiros do transporte público em cidades da América Latina. (https://blogs.iadb.org/transporte/es/esto-es-lo- que-los-usuarios-de-transporte-publico-tienen-que-decir-durante-la- pandemia/).
  2. A concessionária deverá ter contato direto com seus clientes através das redes sociais. A UBER faz isso com centenas de milhões de clientes, enviando mensagens personalizadas a cada um. Não é possível deixar de fazer o mesmo para alguns milhares de passageiros, relembrando que a cada dia são menos cativos do seu serviço e a busca pela fidelização será
  3. Os sistemas troncais segregados, principalmente no formato BRT, sobreviverão. Porém deverão estar integrados a todos os outros modos em operação na cidade ou região
  4. Os sistemas intermediários com veículos de médio porte deverão ter a operação completamente digitalizada, com sistemas de voz e dados on-line informando os passageiros quanto à localização e lotação do ônibus em tempo
  5. As linhas alimentadoras deverão ganhar flexibilidade operacional a começar pelos horários e dias de menor demanda quando os itinerários, pontos de parada e frequência deverão ser ativados de acordo com a solicitação online dos
  6. Tanto os serviços troncais quanto os intermediários deverão oferecer serviços premium, dentro de uma área de operação, através de aplicativos implantados pelos concessionários.
  7. A política tarifária deverá ser instrumento de gerenciamento da demanda, tornando-se flexível e bonificando o uso nos entre-picos, finais de semana e feriados.
  8. A integração de todos os entes da mobilidade deverá buscar os conceitos do MaaS.

O ideal seria existir uma autoridade única ao setor, ideia discutida desde os anos 90. Dada  a  urgência  que  a  situação  exige, enquanto  o  poder  público  nada  decidir, os concessionários e operadores de transportes públicos deveriam criar, entre eles, uma entidade  representativa  única,  sem  abolir  as  atuais,  para  tratar  conjuntamente  da urgente atualização do setor.

Os itens 01 e 02 cabem aos concessionários. O item 03 cabe ao setor público. Grande parte dos investimentos necessários para os itens 4, 5 e 6 já está disponível na frota e em mãos  da  população  (telefones  inteligentes).  A  medida  7  deverá  vir  junto  com  um rearranjo da oferta pois provoca queda de receita se simplesmente for feita à base de um decreto populista. A medida 8 é de médio e longo prazo e pode ser beneficiada pelas anteriores.

As mudanças, em boa parte já presentes, são inevitáveis. Por outro lado, grupos privados, gerenciadores de mobilidade urbana, altamente capitalizados, e com plataformas digitais já implantadas em importantes cidades europeias estão aptos a ocupar o espaço até aqui deixado vazio. Os taxistas sabem do que estamos falando.