Especial Covid-19: o futuro do transporte público pós-pandemia

03/05/2021

Fonte: Estadão

O acesso e a qualidade do serviço de mobilidade urbana em uma cidade se reflete em questões socioeconômicas, logísticas e ambientais. Com a pandemia de covid-19, ficaram evidentes os problemas que afetam parte significativa da população que utiliza o transporte público como principal modal de deslocamento e, por conta das medidas de isolamento social, passaram a enfrentar riscos diários de exposição ao vírus.

O que antes era apenas um ônibus lotado que impactava na qualidade de vida, hoje representa uma ameaça à saúde pública. Nesse sentido, é preciso entender a mobilidade urbana como uma questão plural: o deslocamento urbano nos moldes atuais não é apenas uma forma de transitar pela cidade, mas evidencia a maneira com a qual a população tem acesso à bens e serviços. A partir do momento em que o acesso, que já era desigual em um contexto de normalidade, se torna cada vez mais complexo devido às medidas de isolamento social, cabe ao Estado desenvolver políticas públicas para garantir a segurança da parcela da população que ainda necessita se locomover.

A queda do transporte público

Sendo as medidas de isolamento social a melhor forma de combater a disseminação do vírus, o home office se popularizou entre as mais variadas empresas, aulas são ministradas de forma remota e já é possível até fazer compras de mercado sem sair do conforto do lar. Assim, a necessidade de deslocamento se reduziu, sendo que, de acordo com o Boletim da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), a quantidade de viagens realizadas por passageiros chegou a cair 80% nas primeiras semanas da crise. Apesar de ter existido uma recuperação com o passar dos meses e afrouxamento das medidas de quarentena, a redução continuou: em dezembro de 2020, a redução média verificada alcançou 39,1%.

Desse modo, o ano de 2020 se encerrou com 61% da demanda usual e apenas 80% da frota em circulação. Esse impacto resultou no prejuízo de R$9,5 bilhões acumulados apenas pelas empresas de ônibus urbanos no período de março a 31 de dezembro do ano passado. Com a mão de obra das empresas do setor representando 50% do custo total das operadoras, segundo dados do Painel do Emprego da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o Transporte Rodoviário perdeu 61.436 postos de trabalho, sendo que houve 39.513 admissões e 100.949 desligamentos em 2020.

Apesar da crise ter sido evidenciada durante a pandemia, o setor já estava perdendo passageiros nos últimos anos pela falta de investimentos – entre 2018 e 2019, 12,5 milhões de pessoas deixaram de utilizar o ônibus como principal modal de deslocamento. Nesse contexto, com a popularização dos transportes individuais e aplicativos como Uber e 99taxi, quem acaba por utilizar o transporte público normalmente o faz por falta de opção: 75,3% pertencem à população economicamente mais vulnerável com renda de até 3 salários mínimos.

Como discutimos anteriormente, na primeira matéria do Especial Mobilidade, o planejamento urbano tem um impacto essencial no momento de se pensar a mobilidade. A configuração das cidades faz com que a classe trabalhadora tenha que se deslocar da periferia para os grandes centros urbanos em trajetos que demoram, por vezes, até mais de duas horas e que incluem diversos modais de transporte, expondo essas pessoas também a pontos de ônibus que não possuem proteção contra a chuva, frio ou calor extremo.

Além disso, outro efeito colateral da falta de investimento em transportes coletivos é a grande concentração de poluentes atmosféricos, como o dióxido de nitrogênio, material particulado (MP) e monóxido de carbono (CO). Apesar de ser um perigo silencioso e um tanto quanto sutil, a poluição acarreta mais mortes do que o próprio coronavírus: segundo o estudo publicado pelo The Lancet, que coletou dados de 272 cidades chinesas, a quarentena evitou a morte de 8.911 pessoas decorrente a redução do NO2 e 3.214 mortes associadas ao material particulado em contrapartida às 4.633 mortes registradas pelo covid-19 no mesmo período.

Logo, parece irônico que o investimento no transporte público deve ser intensificado no momento em que o incentivo deveria ser no sentido da menor utilização do transporte coletivo. É preciso alterar a logística de licitação do país, que atualmente parte da remuneração por passageiro, e seguir modelos europeus que partem da remuneração por quilômetro rodado: o modelo atual já pressupõe a lotação e a precarização dos serviços em prol do lucro.

Todavia, o investimento não deve ser restrito ao aumento da frota e modernização dos veículos. É necessário que exista também um planejamento urbano que permita cada vez mais com que os deslocamentos sejam realizados de maneira rápida e eficiente, proporcionando com que os cidadãos tenham acesso à serviços em uma distância menor e abrindo espaço para a mobilidade ativa. Na próxima matéria do especial de Mobilidade, o Portal Connected Smart Cities irá abordar como as cidades devem implementar novos modelos de mobilidade urbana.