Não existe bala de prata

23/02/2021

Fonte: Revista AutoBus

Longe de querer ser contra o futuro, pois a eletrificação é considerada o modelo que representa a melhor maneira de tratarmos com atenção o meio ambiente, o tema precisa ser analisado com mais ponderações, levando em consideração outras alternativas

Editorial

Não é possível alcançar o admirável mundo novo somente com a bala de prata. Os desafios para solucionar a improdutividade, a ineficiência e reduzir as emissões poluentes do setor de transportes só serão alcançados por meio de grandes esforços de toda a sociedade brasileira. Equivoca-se quem acreditar que apenas um ou outro setor será capaz de proporcionar meios que resultem na sustentabilidade no referido segmento.

Vejamos o caso da matriz energética para o transporte, assunto tão debatido ultimamente, e que envolve diversos atores que defendem suas posições em torno da melhor opção que visa a redução dos efeitos nefastos causados pela poluição automotiva. Quem fala mais alto neste momento é o grupo da eletromobilidade, com seus argumentos e marketing pró eletrificação total de maneira radical, reconhecidos como os únicos salvadores do meio ambiente.

Longe de querer ser contra o futuro, pois a eletrificação é considerada o modelo que representa a melhor maneira de tratarmos com atenção o meio ambiente, o tema precisa ser analisado com mais ponderações, levando em consideração outras alternativas (combustíveis renováveis, por exemplo) que também podem apresentar resultados positivos no tocante à mitigação dos poluentes emitidos e que são viáveis, tanto tecnologicamente, como pelo lado econômico.

O que queremos, afinal das contas? Contribuir com um ambiente mais limpo, ter maior rentabilidade operacional, comprar e vender, garantir o futuro? Perguntas complexas para um momento que exige respostas concretas e rápidas, pois a saúde pública vem sendo afetada de maneira agressiva nos últimos anos em virtude dos exagerados níveis de poluição. No contexto de transporte coletivo urbano, o ônibus elétrico é apresentado como o único desfecho para o problema ambiental. Será?

É de conhecimento público que este editorial busca conhecer e propor outras variantes de tração limpa ou de baixo impacto para os ônibus. No entendimento deste artigo, a imposição pela eletromobilidade implica em muitas questões, como por exemplo, haverá energia suficiente para abastecer os veículos? Qual o custo de implantação de todo o sistema de recarga elétrica e quem irá bancá-lo? Ônibus elétrico promove, sim, redução local das emissões poluentes (material particulado e óxido de nitrogênio) e são eficientes. Mas, e se a energia que será o seu combustível vir de fontes sujas, qual será a relação vantajosa para o ambiente? Sabemos que a matriz energética brasileira é beneficiada por uma geração limpa, mas que, em determinados momentos, necessita de fontes emissoras da poluição, como o óleo combustível, no caso das termelétricas. E, ainda ressaltando, se o País crescesse a taxas de 5% ou 6% ano, em ritmo prolongado, já estaríamos com falta de energia há um bom tempo, tendo o apagão como nosso companheiro diário. Há, ainda, a questão da produção das baterias, com o uso de terras raras e outros elementos químicos, e a sua reciclagem ou segunda vida útil, que devem ter uma resposta conveniente com o meio ambiente.

Portanto, não obstante ao fato da promoção à eletromobilidade, é essencial ir além, pensar em outros modelos que também podem tracionar o ônibus de maneira limpa. Vejamos: há o gás natural (fóssil, mas com vantagens frente ao tradicional diesel em termos de menor concentração de poluentes), o seu primo biometano, também considerado uma estratégia ambiental para os motores de combustão interna, pois tem uma excelente pegada de carbono, o hidrogênio (tecnologia ainda cara), trólebus e o diesel verde ou HVO, promissor, segundo várias fontes, quanto a tendência de futuro, que para nós deveria ser ontem. A propósito, a Europa já se mobiliza para introduzir a norma Euro VII de emissões poluentes para veículos comernais com uma tecnologia muito avançada.

No contexto da operação urbana em grandes cidades, geralmente espraiadas e pouco planejadas, é possível combinar uma rede organizada de ônibus com o uso das diversas tecnologias limpas de tração. Por exemplo, para as áreas centrais, com muita concentração de poluentes, ou históricas, pode-se inserir o modelo elétrico como vetor na redução das emissões. Na ligação entre a periferia e o centro, porque não corredores com ônibus de maior porte e equipados com motores de combustão mais limpos (diesel Euro VI, gás natural/biometano)?

Novamente. Falta ao Brasil um programa que promova e favoreça a sustentabilidade, em seus diversos níveis (social, econômica e ambiental), a ser aplicada nos sistemas de transporte. Nos últimos anos, o Governo Federal se eximiu quanto a adotar e praticar políticas públicas com o objetivo da descarbonização no desenvolvimento do transporte. Já passou do tempo de estabelecer mecanismos e medidas consistentes que busquem transição energética rumo a mobilidade limpa por meio de profissionais gabaritados e compromissados com o tema.

Outrossim, a troca de matriz energética do transporte coletivo envolve a discussão do investimento, geralmente mais custosa em relação aos modelos tradicionais. Para que isso aconteça, programas governamentais e privados devem dar suporte e condições especiais aos operadores e aos gestores públicos para a substituição das atuais frotas nos grandes centros urbanos.

O ônibus e seu caráter de flexibilidade operacional, capacitado para atender pequenas, médias e grandes demandas de passageiros, pode ser o paradigma do melhor transporte, desde que seja valorizado e conquiste prioridade na infraestrutura viária urbana, o que lhe garantirá previsibilidade, aspecto tão ambicionado em seus serviços.

E, reforçando. É preciso pensar na composição da sustentabilidade do transporte, não só pelo uso da tecnologia mais limpa, observando igualmente o lado do equilíbrio econômico da operação, a acessibilidade aos passageiros, o seu lado social, capaz de proporcionar um meio de deslocamento digno à população e a redução dos efeitos negativos causados à qualidade de vida. O Brasil possui território com dimensão continental e oferece oportunidades para todos os conceitos tecnológicos de tração limpa ou com baixo impacto. Seria injusto pensar ou adotar apenas uma opção em meio aos outros modelos disponíveis, com viabilidade para transformar o transporte urbano.