Prezado eleitor, eleja o Transporte Público. Candidato, o transporte público elege!

30/10/2020

Fonte: Estadão

Rodrigo Tortoriello é especialista em Mobilidade Urbana e Mobilidade Ativa, po?s-graduado com MBA em engenharia de transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós graduado no Master em Liderança e Gesta?o Pu?blica – MLG do Centro de Liderança Pública (CLP). Hoje é Secretário Municipal Extraordinário de Mobilidade Urbana em Porto Alegre – RS.

Faltando poucos dias para as eleições municipais no Brasil, o autor levanta um questionamento sobre as tímidas propostas dos candidatos na área de mobilidade e transporte público. Para ele, é preciso enfrentar a qualidade dos serviços prestados, criar uma visão da essencialidade do transporte coletivo, medições periódicas e um esforço conjunto para que o poder público e os concessionários evoluam na prestação do transporte coletivo. 

Pelos mais diversos motivos, 2013 foi marcado por uma série de protestos em diversas cidades do nosso País. Estopim da crise: o aumento das passagens de ônibus e do transporte público em geral. O slogan “não é pelos R$ 0,20” tomou conta do Brasil e mostrou que o problema era bem maior, muito além de um simples aumento da tarifa. Mas o transporte público representava, sim, uma das fortes razões de revolta da população. E, desde então, já se passaram mais de sete anos.

O que mudou de lá para cá? Os candidatos em que você votou fizeram algum esforço significativo para mudar a realidade no transporte público? Este tema passou a ser uma prioridade em discussões, projetos e medidas concretas em benefício da nossa população?

Como resposta aquelas manifestações, tivemos algumas iniciativas que geraram recursos para investimentos em infraestrutura, mas nem sempre voltadas ao coletivo, nos programas do governo federal batizados de PAC da Mobilidade. A partir de 2014, foram destinados mais de R$ 20 bilhões para implantação de projetos de veículos leves sobre trilhos (VLT), sistemas rápidos de ônibus (BRT), metrôs e outras iniciativas focadas em obras de arte,
como trincheiras, viadutos, etc, sempre com o discurso, talvez equivocado, de que isso iria “desafogar o trânsito”.

A esse montante se somam outros tantos milhões de reais para investimentos em mobilidade nas cidades sede da Copa do Mundo de 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, para as Olimpíadas de 2016. Naquele momento nos pareceu que os principais problemas seriam resolvidos em boa parte do país.

Algumas obras saíram do papel e cumprem seus objetivos de melhorar a dinâmica dos deslocamentos nessas cidades. Entretanto, diversos projetos até hoje não evoluíram, muitas obras pararam no meio do caminho. Neste processo, enfrentamos desde problemas de corrupção até a falta, ou erro, de projetos executivos para dar início aos empreendimentos. O tal Regime Diferenciado de Contratação, que deveria dar agilidade ao processo de execução, se mostrou uma ferramenta ineficiente para implantação dessas obras.

Na prática, as propostas eram aprovadas com bases pouco sólidas de informações e sem projetos executivos detalhados que evitassem o surgimento de “surpresas inesperadas” durante suas execuções. A Lei Federal 12.587/12, criadora das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, já traz diversos mecanismos para que a mobilidade urbana e o transporte coletivo sejam geridos e direcionados na formação de um sistema mais eficiente, qualificado e barato.

Mas o que falta para essa “lei pegar” no Brasil? Talvez falte ao cidadão entender o grau de dimensão do seu poder, no sentido de escolher os gestores públicos realmente comprometidos com uma política de mobilidade voltada para o coletivo e não para o interesse apenas individual. Ter a compreensão de que o transporte público é um direito social, garantido na Constituição Federal de 1988, no seu artigo 6º, é o primeiro passo para essa mudança.

Até o momento, as propostas que estamos vendo pelo país são muito tímidas quando o assunto é transporte público. A essa hora o leitor, que viu a crise causada pela pandemia do Novo Coronavírus se abater sobre diversos setores da economia, e de uma maneira mais significativa no transporte público, um dos poucos segmentos sem nenhum apoio do Governo Federal até o momento, deve estar se perguntando se ainda existe alguma saída para a mobilidade no Brasil.

Como reverter esse quadro? O que pode ser realmente feito? Certamente as melhorias não precisam passar por propostas mirabolantes, e nem exigir grandes somas de recursos. Um fator primordial é promover e ampliar a transparência dos serviços de transporte coletivo. Uma política que amplie a utilização de dados abertos pode ser a catalisadora de um processo de inovação proporcionado pela própria sociedade. Já vimos isso em outros setores
da economia.

Se não é possível um sistema de dados abertos nesse momento, pelo menos a existência de um portal com as informações sobre os serviços prestados pelos concessionários através de relatórios mensais. Além disso, disponibilizar todas as informações sobre o cálculo tarifário também são importantes.

Os modelos atuais de contratação, normalmente concessões simples, têm se mostrando obsoletos para ambas as partes. Contratos que não defendem os usuários de ônibus, e não dão garantias ao poder concedente em relação ao serviço a ser prestado de forma adequada, precisam necessariamente serem revistos. Padrões de qualidade e eficiência devem ser incorporados nos modelos contratuais. Por outro lado, o setor privado necessita de garantias para que o investimento realizado tenha um mínimo de retorno esperado. A instabilidade jurídica, promovida por intervenções “populistas” de governantes e legisladores em contratos de prestação de serviços no Brasil, afasta os grandes players internacionais e, certamente, não garante ao cidadão a qualidade esperada na prestação dos serviços.

Priorizar a infraestrutura não requer bilhões de reais, principalmente nesse momento em que os gestores precisam administrar uma crise sanitária e econômica. Medidas como a implantação de faixas exclusivas à direita das vias nos horários de pico podem trazer benefícios rápidos e significativos para o conjunto da população. Inverter a lógica, ainda bastante arraigada em alguns segmentos da sociedade, de priorizar o transporte individual em relação ao coletivo, é um compromisso simples e factível de ser assumido para entregas em curto
prazo.

O custeio do transporte público tem sido um tabu para as gestões públicas. O modelo de financiamento somente pela tarifa chegou ao seu limite de exaustão. Durante décadas nos acostumamos a subsidiar o transporte individual, até mesmo sem notar. Todas as duplicações de vias, criação de estacionamentos públicos para automóveis, isenções fiscais e controle artificial do preço de combustíveis objetivaram atender aos deslocamentos por transporte individual.

Está na hora de adotarmos medidas para a criação de uma estrutura de financiamento cruzado, iniciativa já adotada em diversos países do mundo, com um transporte coletivo de maior qualidade em relação ao Brasil. Na Europa, por exemplo, em média, a tarifa paga pelo cidadão cobre apenas 40% do custo total do sistema. O restante dos recursos é oriundo de receitas além dos vindos da tarifa e subsídios públicos.

Os sistemas de transporte público se comunicam pouco com o seu cliente. Poder público e concessionários não possuem uma política de comunicação consistente, e que fale com a sociedade como um todo. A tecnologia nos trouxe uma série de vantagens e possibilidades de acessar o cliente de uma forma eficiente e direta. Informações em tempo real para os usuários de ônibus, e para incentivar os não clientes a utilizar o sistema, são fundamentais. Inovar nos meios de pagamento; facilitar o pagamento e integração das tarifas, inclusive entre modelos tidos como concorrentes, pode melhorar a experiência do cliente.

Para os não clientes é preciso que o poder público consiga falar com a sociedade sobre a importância de um modo de transporte menos agressivo ao meio ambiente, mais democrático e racional no uso das infraestruturas e do espaço público; mais eficiente no consumo de energia e que, em muitos casos, o único meio de transporte disponível para algumas pessoas.

Passar esse sentimento à população em geral é fundamental para se criar uma visão da essencialidade do transporte coletivo. Outro item a ser enfrentado é a qualidade dos serviços prestados. Indicadores de qualidade e conforto precisam ser dimensionados de acordo com a característica de cada serviço. E necessitam, também, de medições periódicas. Existe uma grande diferença entre a qualidade contratada e a ofertada; aquela que está em operação nas ruas e a qualidade percebida pelo cliente.

As propostas apresentadas de uma forma resumida nessa reflexão podem auxiliar a diminuir distância entre as percepções de qualidade existentes em cada um dos partícipes dos sistemas de mobilidade. Fazer com que o cidadão tenha uma melhor percepção de qualidade poderá quebrar o ciclo perverso e vicioso de queda de demanda, aumento de tarifa e perda de eficiência e qualidade, situações repetidas nos últimos anos. De uma forma geral propomos um esforço conjunto para que o poder público e os concessionários evoluam na prestação dos serviços de transporte coletivo para a sociedade.

Para que o assunto fosse de fácil compreensão, e não ficasse restrito ao campo técnico, diversos atores do setor se reuniram para produzir o guia “Como ter um Transporte Público Eficiente, Barato e com Qualidade na sua cidade”. É de extrema relevância que o cidadão leve esse material aos candidatos a cargos públicos, para que o transporte e a mobilidade sustentável sejam pautas dos programas e prioridades dos candidatos ao legislativo e executivo. O papel do cidadão é fazer com que o assunto seja tratado de forma objetiva pelo seu representante. Eleitor, eleja o transporte público. Assim, o seu candidato verá que o transporte público elege!