Transporte coletivo: desconstruindo mitos

12/11/2020

Fonte: A Crítica

Por Fernando Borges de Moraes, advogado e presidente de Comissão Nacional de Transporte e Mobilidade Urbana da OAB


Há quatro anos publiquei neste espaço algumas considerações sobre o transporte coletivo urbano, um dos temas das campanhas políticas dos candidatos a prefeito. Na campanha em curso, muitas das questões se repetem, todavia sem a apresentação de propostas que realmente venham ao encontro dos anseios dos cidadãos e das demandas do setor. Assim, cabe reiterarmos aqui alguns pontos relevantes.

Todas as campanhas eleitorais dos candidatos a prefeito das capitais demonstraram o protagonismo do transporte coletivo urbano como tema de interesse. Sem exceção, em todas as capitais brasileiras, todos concordam que o transporte coletivo apresenta carências que demandam políticas públicas importantes. O transporte coletivo deve ser priorizado.

Todavia, há muito desconhecimento acerca do tema, no que resulta em muito marketing e pouca consistência técnica. Destacamos novamente alguns tópicos importantes para uma melhor compreensão da questão a partir da desconstrução de alguns mitos:

1) “O ônibus é meio de transporte obsoleto”: grave equívoco. O ônibus ainda é uma forma moderna e eficiente de se transportar pessoas. O que muitas vezes observamos é a obsolescência da gestão do sistema de transporte. Segundo o engenheiro de transporte Flávio Caldasso, em artigo publicado na revista “AutoBus”, edição 251, ônibus é, dentro do conceito de mobilidade, o que mais se aproxima dos deslocamentos a pé ou de bicicleta, pois chega onde nenhum outro modal alcança. Os investimentos na implantação de um sistema de ônibus são muito inferiores aos investimentos necessários para o metrô, por exemplo, sendo que o sistema “BRT” (“Bus Rapid Transit”) pode ser tão eficiente quanto. Capitais importantes do mundo como Londres, Nova Iorque e Paris tem sistemas de metrô eficientes, mas mesmo assim não abriram mão do ônibus dada sua praticidade e baixo custo relativo.

2) “O modal aquaviário é a solução para os problemas de mobilidade em cidades litorâneas ou servidas por rios”: mito. Em geral, salvo cidades muito peculiares como Amsterdã ou Veneza, que são servidas por uma capilaridade hidroviária muito grande, o modal aquaviário, para funcionar, depende de se diagnosticar seu impacto a partir de pesquisas “origem/destino” e depende de grandes terminais que venham a funcionar como “hubs” a partir dos quais os passageiros terão que se valer de outros modais, notadamente o ônibus, para chegar ao seu destino final.

3) “O transporte coletivo é de responsabilidade das empresas de ônibus”: falso. A responsabilidade é compartilhada com o poder público e sofre influência de políticas governamentais de todas as esferas. Para compreender bem isso basta observar que no Brasil, nos últimos anos, houve um incremento do crédito para a aquisição de carros de passeio, com juros relativamente baixos e redução de “IPI” (Imposto sobre Produtos Industrializados) a fim de funcionar como incentivo às montadoras de veículos, o que resultou em um volume de vendas de veículos sem precedentes na história. Todavia, as grandes cidades não estavam preparadas para isso, o que resultou em graves problemas de mobilidade urbana. Essa expansão do crédito foi uma política pública de âmbito federal, mas com graves influências no âmbito local. Ora, a política econômica nacional não pode esquecer das realidades locais. Incentivar a compra de automóveis para transporte individual sem uma correspondente atenção para a necessária alocação de recursos para a infraestrutura de mobilidade urbana foi um grave erro que muito ainda vai penalizar os cidadãos das metrópoles. E isso é agravado pelo fato da necessidade de que as cidades possuam estruturas de gestão técnica que garantam a continuidade dos projetos de mobilidade urbana e o respeito ao Plano de Mobilidade Urbana aprovado por lei, com rígida fiscalização urbanística a fim de que se preserve o planejado.

4) “O custo da tarifa é a maior preocupação do usuário do serviço de transporte coletivo urbano”: mito. O cidadão deseja eficiência. Segundo pesquisas realizadas pela “Associação Nacional de Empresas de Transporte Urbano” (“NTU”), o preço da tarifa sequer aparece entre as prioridades para o usuário do serviço. Antes disso, o cidadão se preocupa com pontualidade, regularidade, segurança pessoal, qualidade dos ônibus e qualidade das vias públicas, paradas e terminais. Já é consenso entre os técnicos da área que o aporte de recursos públicos complementares à tarifa paga pelo usuário é fundamental para viabilizar o transporte coletivo com qualidade, já que o custo desse serviço essencial não pode pesar apenas no bolso do trabalhador ou do empresário que adquire o vale-transporte para seus empregados.

5) “Ônibus é meio de transporte para os pessoas carentes”: isso é fruto de um triste preconceito. Como dito acima, capitais importantes de países mais desenvolvidos usam o ônibus e é comum encontrar usuários de todas as classes sociais nesse modal. No entanto, no Brasil ainda há preconceito com o ônibus, o que decorre fundamentalmente da baixa prioridade que é dada ao modal pelo poder público, levando à marginalização do sistema público de transporte. Muitas vezes as paradas de ônibus sequer são identificadas e iluminadas. Tampouco há abrigo para os passageiros se protegerem das intempéries. Por que não dar preferência efetiva ao ônibus em todas as vias pelas quais ele passa, com semáforos inteligentes nos cruzamentos? Por que a pavimentação das ruas não suporta o peso dos ônibus, gerando buracos e solavancos? Por que os terminais de ônibus não podem ser áreas de circulação agradável, com oferecimento de banheiros limpos, salas de espera com prestação de serviços públicos e privados?

A qualidade do transporte público é uma questão de cidadania, sendo que o transporte é direito social na forma do artigo 6º da Constituição Federal, assim como a saúde, a educação e a segurança. Um melhor transporte por ônibus é possível, mas deve ser fruto de um trabalho coletivo. Não há milagre, nem “salvador da pátria” para resolver o problema. Só a união de forças, a partir de sólido conhecimento técnico da área, com continuidade administrativa, pode resultar em um transporte coletivo melhor, mais humano e mais eficiente.