Um novo transporte para o novo normal

10/09/2020

Fonte: NTU
 


A pandemia escancarou as mazelas do transporte público e antecipou o caos anunciado. Agora o setor, os governos e a sociedade precisam se unir pela única solução possível: a reestruturação do serviço

Esperançoso, e também impaciente, o mundo assiste à corrida pela vacina para o coronavírus Sars-Cov-2. Seis candidatas lideram na última fase de testes clínicos, 20 realizam testes – algumas inclusive no Brasil - e outras 139 estão em desenvolvimento, num total de 164 pesquisas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda não se sabe qual sairá na frente, mas é unânime o desejo que chegue logo a imunização. Existe consenso. Algo que falta, no Brasil, quando o assunto é a urgência de medidas para melhorar o transporte público e salvar o sistema do colapso. Assim como a covid-19 precisa de uma vacina, o serviço responsável pela mobilidade de milhões de pessoas carece de uma revisão completa e, claro, vontade política para fazê-la. Caso contrário, não sobreviverá. Atualmente, a parte mais visível dos problemas que o setor enfrenta tem relação direta com o vírus que paralisou o mundo em 2020. De acordo com o segundo relatório da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) sobre os impactos da covid-19 no transporte público por ônibus, no período entre 16 de abril e 15 de maio houve redução de 71% na demanda em relação ao período anterior à pandemia. Ou seja, menos 30 milhões de passageiros por dia.

O relatório foi elaborado com dados de 26 capitais, o Distrito Federal, 14 regiões metropolitanas e 295 municípios. Enquanto a demanda caiu 71%, o ajuste da oferta dos serviços realizado pelos gestores públicos chegou a uma queda de 52%. Com demanda menor que a oferta, o prejuízo acumulado após 60 dias foi de R$ 2,1 bilhões. Neste período, a Real Transportes Metropolitanos, empresa de Guarulhos (SP), foi a primeira a encerrar as atividades em função da pandemia, enquanto outras 11 operadoras sinalizaram o risco de fechar as portas. Apesar do cenário desfavorável, não é honesto colocar tudo na conta da covid-19. O setor já vinha amargando perda de demanda, ano após ano, por causa de outro “vírus”: o da falta de políticas públicas. Entre 2013 e 2017, a queda foi de 25%. E, somente entre 2018 e 2019, 12,5 milhões de pessoas deixaram de usar o ônibus. “O modelo atual de transporte vem de um processo de degradação há muito tempo. Era uma morte anunciada, o coronavírus apenas precipitou”, afirma o consultor em mobilidade urbana e membro dos Conselhos Diretores do Instituto Movimento pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade (MDT) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), {A} Carlos Batinga.

Crise gera oportunidade
As consequências profundamente negativas da pandemia no setor deram início a um movimento para avaliar as perdas e discutir saídas para o futuro. “Durante esse período ficou muito efervescente o debate nos meios de comunicação e na sociedade, assim como entre nós. O tema transporte nunca havia sido discutido de maneira tão concentrada e tão ampla. Fizemos mais reuniões virtuais do que se pode imaginar. Nasceu uma grande oportunidade de rever procedimentos e conceitos em nossa área”, comemora o superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Luiz Carlos Néspoli, o Branco. Foi assim que a NTU elaborou o Programa de Reestruturação do Transporte Público por Ônibus. Composto por três pilares – Regulação e Contratos, Financiamento, e Qualidade e Produtividade –, o programa propõe trazer ao setor mais segurança jurídica, racionalização e inovação nas redes, inclusão social, produtividade, sustentabilidade econômica e qualidade e está sendo discutida pela ANTP. As medidas são, essencialmente, de médio e longo prazo, mas o documento é muito claro quando invoca a importância de implantar ações emergenciais juntamente às ações estruturantes. E, ao mesmo tempo em que chama o governo federal à função de “guardião da política nacional de mobilidade urbana”, exige a participação ativa de estados e municípios. Tais pontos são vitais para que a população continue tendo ônibus disponíveis nas ruas.

“Essa ideia de reestruturação é um sentimento antigo do setor, de que o modelo atual não se sustenta mais. Não há possibilidade de avançar, principalmente agora, depois da pandemia, quando se espera um comportamento diferente das pessoas. A demanda, que já era insuficiente, está pior com o coronavírus. É momento de repensar a atividade, e reestruturar é necessário”, garante o presidente- -executivo da NTU, Otávio Cunha.

Regulação e Contratos
Não há como discutir melhorias na gestão e na operação do sistema de transporte público brasileiro sem envolver o governo federal. Quando a Constituição de 1988 deu a estados e municípios a competência de organizar e prestar serviços de transportes coletivos urbanos e metropolitanos, a União deixou de ter responsabilidade e a política nacional para a área foi desmontada. Segundo o Programa de Reestruturação, a participação e liderança por parte do governo federal não são apenas uma necessidade, mas questão de lógica. “Vivemos num país urbano. Mais de 80% da população vive nas cidades e quase 80% do PIB do país é produzido nelas. Então, o deslocamento de pessoas não é um problema apenas do município, mas de todo o país, passando por todas as esferas. Enquanto não houver essa consciência, não vamos evoluir, e sim degradar cada vez mais”, alerta Carlos Batinga.

Além disso, o modelo de regulação e contratação por concessão comum, no qual o risco de ter ou não passageiro para transportar é do concessionário, se mostrou anacrônico. Quando o isolamento social fez a demanda despencar, coube às empresas arcar com o prejuízo gerado pela falta de passageiros e com as exigências adicionais de oferta do serviço. “O contrato deve mudar para um modelo por produção, ou seja, de oferta do serviço. O risco da demanda é risco da cidade, do poder público. Se a receita vinda do passageiro não for suficiente, o município precisa pagar pela diferença”, pondera Branco. O caminho, portanto, é remunerar as empresas operadoras pelo custo de produção de serviços, que devem ser prestados conforme padrões de qualidade e desempenho definidos pelo poder público contratante. Para que isso aconteça, é urgente a revisão de leis federais do setor, como ocorreu com o Novo Marco Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso Nacional. Metas e ações objetivas, modernização e estímulo a investimentos privados são alguns pontos positivos que também poderiam ser aplicados ao transporte. As legislações estaduais e municipais, por sua vez, também precisariam seguir essa linha de atualização.

Financiamento
Esse é e sempre foi um ponto sensível. Trata-se de um pilar formado por duas frentes: custeio e investimentos. No caso do custeio, a pressão social por mais qualidade e protocolos sanitários mais rígidos devido à covid-19 torna impossível o equilíbrio financeiro da atividade nos moldes atuais. Por isso, é urgente a correção de políticas falidas que impedem o setor de oferecer um serviço melhor à população. Primeiro, é fundamental diferenciar a tarifa pública (cobrada dos passageiros) da tarifa de remuneração pelos serviços prestados (que cobre o custo das empresas operadoras). No modelo atual, as passagens dos usuários comuns custeiam o serviço e as gratuidades, que oneram o custo final em 20% em média. A conta não fecha. A ideia é criar fundos com recursos dos orçamentos públicos e de outros setores econômicos para cobrir a diferença entre as receitas das tarifas pública e a remuneração pelos serviços, além de bancar as gratuidades com recursos das áreas beneficiadas – como educação (para os passes estudantis) e seguridade social (para gratuidades de idosos).

“Outras receitas podem ser buscadas, principalmente pela taxação do transporte individual motorizado, seja na gasolina, em estacionamentos ou no licenciamento anual de veículos. Hoje não queremos mais discutir valores de tarifa, e sim uma remuneração justa. Também é importante que os contratos vigentes sejam revistos, ajustados à nova realidade. Isso traz segurança e garante um serviço sustentável e de qualidade”, observa Otávio Cunha. Já a frente de investimentos precisa cobrir a infraestrutura, veículos e tecnologia. Para esses últimos, o programa recomenda condições melhores de acesso à linhas oficiais e especiais de financiamento – operadas pelo BNDES e a Caixa Econômica Federal – para compra de ônibus e sistemas inteligentes de transporte. Isso proporcionaria mais qualidade, produtividade e transparência. Em relação à infraestrutura, o plano reforça a importância de priorizar o ônibus no sistema viário, com investimentos em BRT, faixas exclusivas e corredores, através de recursos de programas oficiais de incentivo e parcerias público-privadas. Para o conselheiro da ANTP, Antonio Luiz Santana, a capacidade do setor de se reinventar e sustentar, já num futuro próximo, dependerá, sobretudo, da união de forças. “A maioria dos sistemas são de governança municipal, e o município é o ente federativo com menos recurso. Os estados e o governo federal precisam entrar em cena. A equação só se torna viável se forem criadas condições institucionais para um aporte financeiro permanente após a covid”, defende. Com o objetivo de reduzir custos do transporte público, o Programa de Reestruturação do Transporte Público por Ônibus propõe, ainda, a desoneração tributária da atividade, o que representaria não apenas economia, mas principalmente a possibilidade de investir em qualidade. Nesse sentido, a reforma tributária que tramita no Congresso Nacional “se apresenta como oportunidade única para avançar nessa direção, perfeitamente justificada por se tratar de um serviço público essencial e um direito social dos brasileiros, conforme definido na Constituição Federal”, afirma a proposta. “A reforma tributária é necessária para desonerar o serviço, no qual o empregador vê 50% dos recursos serem destinados somente para a mão de obra. Não é justo que o cidadão pague uma tarifa mais cara em função de o setor ser altamente tributado. É importante desonerar a cadeia produtiva como um todo”, destaca Otávio Cunha.

Qualidade e Produtividade
Com a pandemia, a questão da qualidade do transporte público ganhou uma nova percepção por parte da sociedade, que tem exigido melhorias diante do novo cenário. Sob essa lógica, o programa de reestruturação propõe a atuação em algumas questões. Entre elas está a concentração de demanda em horários de pico, que chegam a concentrar até 20% da demanda diária em duas horas distribuídas pela manhã e à tarde. “Historicamente, concentramos os horários das atividades de tal maneira que acaba gerando picos nas primeiras horas da manhã e no fim da tarde. Há sempre um acúmulo de pessoas em determinados períodos, não há meio de transporte viável assim. E o custo do transporte é maior em função desse pico, pois as operadoras têm de contratar toda a oferta de serviço necessária para vencer esse pico, mas nos demais horários há ociosidade”, explica Branco, superintendente da ANTP. O caminho, segundo o programa, é escalonar as atividades urbanas, isto é, definir horários diferentes para o funcionamento dos diversos segmentos econômicos, como indústria, comércio, escolas e bancos, por exemplo. Isso permitiria a distribuição dos passageiros ao longo do dia e o aproveitamento racional da frota, reduzindo custos. Uma iniciativa viável e até fácil de ser adotada, já que as pessoas também são prejudicadas pelo trânsito caótico nos horários de pico e a consequente redução de qualidade de vida.

Além do mais, a prevenção à covid-19, com seus rígidos protocolos sanitários, acaba exigindo tal escalonamento. “A população já reclama dos ônibus lotados com taxas de ocupação da ordem de seis passageiros por metro quadrado no pico. Esse número caiu para três ou quatro com a pandemia e, mesmo com a retomada das atividades econômicas, o comportamento das pessoas vai mudar, será exigido mais cuidados com higiene e frota, que inclusive já vem sendo tomados pelas empresas”, avalia o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha. O presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana e secretário extraordinário de Mobilidade Urbana da prefeitura de Porto Alegre, Rodrigo Tortoriello, concorda: “O maior problema nos próximos meses será reconquistar a confiança da população e conseguir transmitir segurança no transporte coletivo, que não é um vetor de contaminação do coronavírus. Isso será possível por meio de protocolos eficientes de higiene e divulgação de estudos”. Outros fatores citados no documento estão ligados à qualificação, eficiência e boa imagem. A criação de programas de capacitação para gestores públicos e empresas operadoras e o combate à desinformação e à falta de transparência para com a sociedade são algumas sugestões. A recomendação é criar padrões nacionais de referência para eficiência e qualidade e viabilizar ferramentas de acompanhamento do serviço. Para isso, seria necessário um sistema nacional de informações do setor.

Na avaliação de Carlos Batinga, também é fundamental investir em uma estrutura de qualidade para a gestão local de transporte. “Essas gerências estão mais deficitárias do que eram antes. Houve uma época de reestruturação de órgãos de gerência local, com capacitação, investimento em tecnologia, estrutura, mas isso estagnou. Não houve continuidade e esses setores foram desmontados. Quando o município tem isso bem estruturado, há mais cobrança, monitoramento dos prestadores de serviço e, dessa forma, qualidade superior”, aponta o consultor.

Para curto prazo, dinheiro e incentivo
Embora seja inegável a relevância das medidas de médio e longo prazo para a sobrevivência do transporte público por ônibus, não se pode ignorar as ações emergenciais necessárias para reverter a complicada situação econômica das empresas. A falta de dinheiro ameaça não apenas a continuidade do serviço, mas também milhares de empregos, uma vez que os custos com pessoal comprometem 50% da receita. A Medida Provisória nº 936, de 1º de abril, transformada na Lei 14.020/2020 – que permitiu suspensão temporária de contratos e redução de carga horária de trabalho e salários –, aliviou um pouco os prejuízos por quatro meses. Ainda assim, somente entre abril e maio as demissões aumentaram 80%, e as suspensões de contrato, 356%. A falta de previsão, por parte do governo federal, de novas prorrogações dos acordos, aumenta a insegurança do setor.

E não é para menos. Apesar da retomada das atividades por todo o país, muitas empresas seguem com apenas 20% ou 30% da demanda. E a incerteza quanto à normalização – se é que cabe usar essa palavra – é grande. “Pode ser que ocorram mudanças, como o home office ganhando espaço. Não será universal, mas vai impactar. Também há desemprego e consequente redução de renda, as empresas aderindo ao delivery, e ainda o medo. Esses fatores, conjugados, não vão permitir a demanda anterior à pandemia, ao menos pelos próximos dois anos”, prevê Branco, superintendente da ANTP. A esperança para um socorro mais imediato gira em torno da ajuda emergencial que destina até R$ 4 bilhões dos cofres da União para estados, Distrito Federal e municípios com mais de 200 mil habitantes para garantir a prestação do serviço de transporte público. Os recursos podem ser usados na compra de bens essenciais à prestação dos serviços, reequilíbrio financeiro de contratos impactados pela covid-19 e serviços de transporte de pessoas com deficiência. Inclui a compra antecipada, pelo poder público, de bilhetes de passagens para beneficiários de programas sociais, proposta originalmente no Programa Emergencial Transporte Coletivo. “Esse aporte financeiro é bem-vindo. Os municípios mais estruturados e os menores com boa estrutura de gestão têm condições de trabalhar com isso. Não se trata de ‘dar dinheiro para empresário’, mas sim de salvar o sistema de transporte público do país. Precisamos ter essa cultura de tratar o setor como serviço essencial”, esclarece Rodrigo Tortoriello. Carlos Batinga reconhece a importância dos recursos, mas também ressalta a necessidade de estabelecer uma política nacional de transporte para guiar os municípios nas ações. Afinal, apesar da sanção da Lei de Mobilidade Urbana em 2012, o Brasil nunca aplicou seus princípios e diretrizes na prática. “Não pode cada cidade montar uma política de transporte. Até porque há políticas que são federais e afetam o setor, como a trabalhista, a energética, a de equipamentos industriais. Precisamos de uma política nacional, bem definida, que cada município possa adaptar à sua realidade. Não vai existir ilha de prosperidade rodeada por problemas de todos os lados”, reflete o consultor.

Seja como for, já há um consenso entre profissionais e especialistas do setor: R$ 4 bilhões não bastam. “Com toda a pressão política junto ao discurso técnico, o governo federal ficou sensível à questão do transporte público, direito social garantido pela Constituição, e vai liberar recursos para ajudar o setor a passar por esse momento. Mas não é suficiente. Após a pandemia ainda teremos um déficit grande”, lamenta Santana, conselheiro da ANTP.

Sem mudanças estruturais…
… Os efeitos serão letais. Esse é o tom do manifesto divulgado em junho pela ANTP para expressar a preocupação com a possibilidade de um colapso total do transporte público brasileiro e pedir providências. O atual sistema conta com ônibus, transporte sobre trilhos e barcas em mais de 2.900 municípios. São atendidos 70 milhões de passageiros por dia. O serviço por ônibus é oferecido por cerca de 1.800 empresas privadas e conta com frota de 107 mil veículos que, juntos, percorrem 191,4 milhões de quilômetros por mês. Só os empregos diretos são 405 mil. É impossível ignorar uma estrutura tão grande. O setor contribui para a manutenção do mercado de trabalho no país, ao garantir que tantos profissionais cheguem até seus postos diariamente. Ademais, também é vetor econômico e afeta outros segmentos: com a pandemia, houve queda de 60% na distribuição de combustível e de 40% na comercialização de ônibus. “Temos debatido e aprendido com outros países desde o primeiro dia da crise. O que mais chamou a atenção foi a fragilidade do nosso sistema com a remuneração pela tarifa. Há muitos locais que já oferecem subsídio para o serviço, e, mesmo nos Estados Unidos, que prioriza o transporte individual, o governo foi rápido em destinar 25 bilhões de dólares para a manutenção do transporte público nas grandes metrópoles. Aqui, ainda estamos nas tratativas para que haja algum socorro ao transporte”, compara Rodrigo Tortoriello. Segundo o manifesto da ANTP, o transporte, em geral, custa R$ 546 bilhões por ano ao país, sendo R$ 446 bilhões (ou 82%) só para o transporte individual, considerando custos para indivíduos, poder público, meio ambiente e os gerados por acidentes de trânsito. Dessa forma, a quebra do sistema e a ida de mais pessoas para o automóvel e o transporte por aplicativo aumentariam esses gastos para R$ 866 bilhões. Um custo adicional de R$ 320 bilhões ao ano. Com apenas 10% desse valor, seria possível reduzir a tarifa de ônibus pela metade em todo o país.

O consultor em mobilidade urbana Carlos Batinga cita também a desigualdade social como consequência do fim do serviço: “Ou a gente conserta isso ou as divisões sociais vão ficar mais latentes. As classes mais privilegiadas vão continuar circulando em transporte privado, e os menos favorecidos, que precisam do transporte coletivo, não terão opção. A pandemia apressou o caos, mas também despertou na sociedade o senso da necessidade de um transporte público de qualidade”. Tendo em vista todo esse cenário, a ANTP lista em seu manifesto cinco medidas essenciais: destinação imediata de recursos extratarifários dos orçamentos locais e do governo federal durante a pandemia e na fase de transição pós-pandemia; implantação imediata de princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), com investimentos massivos no desenvolvimento de uma mobilidade urbana sustentável e em infraestrutura de transporte público coletivo; incentivo especial, inclusive tributário, para mobilidade ativa (especialmente a pé e de bicicleta); mudança do modelo de financiamento do custeio do transporte público, com previsão de recurso extratarifário do orçamento público e de todos os segmentos beneficiados pelo serviço; e mudança do modelo de contratação da prestação de serviços, passando para contratação da oferta, definida e redefinida pelo poder concedente quando preciso, a fim de garantir qualidade. “Esse é o grande desafio para se pensar na retomada. Vamos precisar de envolvimento e tomada de decisões, mas o fato é que o modelo atual está ultrapassado e, se não for modificado, o setor terá de ser assumido pelos poderes públicos, pois não haverá empresários interessados em um serviço que só dá prejuízo”, declara Otávio Cunha. “A organização do transporte no Brasil é muito boa. Se perdermos isso, será difícil recuperar. O transporte pirata pode voltar e isso não é bom para a cidade. Gera preocupação e insegurança”, completa Branco.

O retorno do transporte ilegal também é uma preocupação real para o conselheiro da ANTP, Antonio Luiz Santana. “Se o poder público não resolver, o mercado resolve. As empresas que não sobreviverem saem e aí o clandestino aparece e assume. Não fica espaço vazio e a população se vira como pode. Não podemos ficar de braços cruzados diante de toda essa ameaça. Acredito que um problema só é resolvido quando vira uma questão para a sociedade como um todo. Enquanto estávamos debatendo só entre nós, no setor, não houve o impacto de agora, com as pessoas enxergando o problema. Então, tenho esperança de que tudo se resolva da melhor forma”, afirma Santana, otimista.

Porto Alegre dá o exemplo
Em tempos de crise, cidades em todo o Brasil trabalham para promover melhorias, mesmo em cenários desfavoráveis. A prefeitura de Porto Alegre, por exemplo, criou o Projeto Transporte Cidadão, um conjunto de propostas para o transporte público da cidade. Além de não aumentar a passagem neste ano de pandemia, o plano inclui a redução do custo do vale transporte, passe livre para trabalhador informal, passagem de R$ 1,00 para estudantes e de no máximo R$ 2,00 para o cidadão em geral. Para isso, a capital gaúcha trabalha em um pacote com cinco projetos de lei para garantir o Transporte Cidadão. Se aprovados, juntos, os PLs vão gerar uma redução de R$ 4,70 no preço da passagem. Algumas iniciativas já vêm sendo implantadas por lá em prol do transporte público.

Além de lutar para que os 38% dos 1,4 milhão de habitantes que usam o transporte público não sintam os impactos do aumento de tarifa, Porto Alegre tem buscado oferecer mais transparência. Para atender ao quesito qualidade, a previsão é seguir investindo em faixas exclusivas, GPS na frota, aplicativo com localização dos ônibus em tempo real e tecnologias como reconhecimento facial e recarga de tíquetes com cartões de crédito e débito. A segurança também tem sido prioridade: houve queda de 78% nos assaltos a ônibus, o menor índice em 15 anos. Aumento na fiscalização dos veículos e auditoria no sistema de bilhetagem eletrônica são outras conquistas. Certamente, um bom exemplo a seguir